SOBRE O DEBATE DA (NOVA) BANDEIRA*
Por: Edgar Barroso
Estava num debate hoje em que o palestrante, um conhecido professor, lembrou-nos de um famoso ditado queniano que diz o seguinte: “The croaking of the frogs does not stop the elephant from drinking water”. Em português livremente traduzido, diz que o coaxar das rãs, por mais barulhento, incessante e até ensurdecedor que seja, jamais impediu o elefante de saciar a sua sede no rio. Logo pensei: essa metáfora pode oferecer-nos uma lente através da qual podemos compreender o momento histórico que Moçambique atravessa.
O elefante representa aquilo que é essencial, legítimo e inevitável. A água simboliza o direito inalienável de um povo se autodeterminar. E o coaxar? Esse é o ruído, às vezes bem-intencionado, outras vezes oportunista, que tenta obscurecer, minimizar ou deslegitimar os processos democráticos genuínos que temos estado a experimentar nos últimos anos. No contexto moçambicano actual, esse ruído manifesta-se nas críticas dirigidas contra Venâncio Mondlane e o partido ANAMOLA relativamente ao recente concurso público para a proposta de uma nova Bandeira Nacional.
O meu argumento é simples, aqui. O concurso público promovido pelo ANAMOLA não constitui, como alguns críticos apressadamente sugeriram, um capricho partidário, uma distracção política ou uma manobra populista. Trata-se, pelo contrário, e de forma inequívoca, de um acto de cidadania, e esse acto encontra-se explícita e robustamente protegido pela Constituição da República de Moçambique. Os alicerces constitucionais desta iniciativa são múltiplos e convergentes, formando uma base jurídica sólida que resiste a qualquer contestação de boa-fé.
O que diz a Constituição da República?
Por exemplo, o artigo 48 da nossa Constituição, que consagra a Liberdade de Expressão, garante a todos os cidadãos moçambicanos o direito de formar, exprimir e divulgar livremente os seus pensamentos e opiniões. Esse direito não se limita a questões triviais ou desprovidas de importância nacional; pelo contrário, estende-se precisamente àquelas matérias de maior relevância simbólica e identitária, incluindo a discussão sobre os símbolos que representam a nação. Propor uma nova bandeira é, portanto, exercer o direito constitucional de opinar sobre a identidade colectiva do país.
Complementarmente, o artigo 73, que trata da Participação na Vida Pública, estabelece que todos os cidadãos têm o direito e o dever de participar na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país. Esta participação não se esgota no voto periódico, abrangendo o seu envolvimento activo na definição dos destinos da nação, incluindo os seus símbolos, valores e representações. A meu ver, o concurso da bandeira materializa, de forma exemplar, esse princípio participativo, permitindo que dezenas de milhares de cidadãos exercessem concretamente este direito constitucional.
Há mais. O artigo 52, sobre a Liberdade de Associação Política, reconhece que os partidos políticos gozam de ampla liberdade para desenvolver iniciativas de mobilização cívica, educação política e participação democrática. Nesse sentido, o concurso da bandeira insere-se plenamente nesse âmbito de actuação legítima dos partidos políticos numa democracia pluralista, representando precisamente o tipo de iniciativa que fortalece o tecido democrático de uma nação.
Por último, e talvez o mais fundamental de todos, seja o artigo 2, que consagra o princípio da Soberania Popular. A nossa Constituição proclama que a soberania reside no povo moçambicano, que a exerce segundo as formas estabelecidas pela própria Constituição. Se o poder emana do povo, então os símbolos que representam esse poder também devem emanar do povo, e não de decisões autoritárias tomadas por elites partidárias em gabinetes fechados há mais de quarenta anos.
Portanto: propor, debater e redesenhar símbolos nacionais não constitui crime, heresia, subversão ou desvio de prioridades. É, pelo contrário, o exercício pleno da democracia. As sociedades democráticas maduras distinguem-se precisamente pela capacidade de revisitar, questionar e, quando necessário, reformular os seus símbolos à luz de novos contextos históricos, valores emergentes e aspirações colectivas renovadas. A ideia de que os símbolos nacionais são intocáveis, sagrados ou imunes ao escrutínio público revela uma mentalidade autoritária incompatível com os princípios democráticos. Numa democracia genuína, tudo, absolutamente tudo, pode e deve ser objecto de debate público, desde que esse debate respeite os procedimentos constitucionais e os direitos fundamentais dos cidadãos.
O falso dilema das prioridades: quem governa é o Governo, não a oposição
Uma das críticas mais recorrentes dirigidas ao concurso da bandeira assume a seguinte forma: “Há problemas mais importantes em Moçambique, fome, pobreza, desemprego, acesso à saúde, educação precária. Por que perder tempo com uma bandeira?” No meu entendimento, essa crítica, aparentemente sensata, confunde as funções constitucionais da oposição com as responsabilidades executivas do Governo.
Nenhum país amadurece democraticamente enquanto mantiver a ilusão infantil de que a oposição deve governar no lugar do executivo. A arquitectura constitucional das democracias modernas estabelece uma clara divisão de responsabilidades. Compete ao Governo executar políticas públicas, gerir recursos orçamentais, implementar programas de combate à pobreza, criar empregos através de políticas económicas eficazes, garantir acesso universal à saúde e educação, e assegurar a segurança alimentar e o desenvolvimento sustentável. Por outro lado, compete à Oposição fiscalizar a acção governamental, propor alternativas políticas e programáticas, mobilizar a cidadania, educar politicamente a população, representar perspectivas minoritárias ou dissidentes, e preparar-se para, eventualmente, assumir funções governativas.
Meus caros, a responsabilidade constitucional para resolver os problemas da fome, da pobreza e do desemprego, dentre outros, recai sobre o partido no poder, o que está a governar de facto a nossa república. Exigir que a oposição resolva esses problemas é não apenas irracional, mas também uma tentativa de desviar a atenção das falhas governamentais. Nessa ordem de ideias, o argumento segundo o qual “há problemas mais importantes em Moçambique do que discutirmos sobre uma nova bandeira” constitui um falso dilema, um truque retórico destinado a silenciar iniciativas cívicas legítimas. Este tipo de argumentação pressupõe, erroneamente, que só se pode trabalhar numa frente de cada vez, quando na realidade organizações e movimentos políticos são multifacetados e capazes de actuar em múltiplas dimensões simultaneamente. Pressupõe também que questões simbólicas (como a mudança da actual bandeira) são triviais comparadas com questões materiais (como combater a fome ou a corrupção), ignorando décadas de investigação em ciências sociais que demonstram como os símbolos estruturam identidades coletcivas e mobilizam vontades políticas. Por fim, sugere absurdamente que a oposição deve abster-se de propostas inovadoras até que o Governo resolva todos os problemas do país. Pelo amor de Deus…
Para já, e sem querer ser advogado do ANAMOLA, importa salientar que a intervenção pública desse partido não se limita(rá) à questão da bandeira. Obviamente, o partido apresenta propostas claras, públicas e programáticas, expressas nos seus estatutos, conteúdo programático e (futuro) manifesto eleitoral, para enfrentar os problemas estruturais de Moçambique. Do que eu já li até agora, essas propostas abrangem a desigualdade económica através de políticas redistributivas e reforma fiscal progressiva, o desemprego juvenil mediante programas de formação profissional e incentivos ao empreendedorismo, a pobreza crónica através de redes de proteção social robustas e desenvolvimento rural sustentável, as deficiências educativas via investimento na qualidade do ensino e acesso universal, a necessidade de reforma institucional através da descentralização administrativa e combate à corrupção, e o problema do autoritarismo mediante o fortalecimento das instituições democráticas e a separação efectiva de poderes. Tudo isso é de domínio público.
Novamente, o concurso da bandeira não substitui essas propostas programáticas. O concurso as complementa e, mais do que isso, demonstra que o ANAMOLA é capaz de liderar processos participativos, transparentes e verdadeiramente democráticos, algo que nenhum Governo moçambicano jamais ousou fazer, até hoje, relativamente aos símbolos nacionais. A meu ver, essa capacidade de mobilização e gestão democrática é, em si mesma, uma prova de competência política que valida a credibilidade do ANAMOLA como alternativa governativa.
P.S.1: A presença da AK-47 na nossa actual bandeira é particularmente problemática. Para além de não ser um símbolo ancestral, cultural ou identitário moçambicano, é um artefacto militar soviético do século XX. A sua permanência na bandeira levanta questões éticas fundamentais: Que mensagem transmitimos às nossas crianças quando as ensinamos que o símbolo máximo da nação é uma arma de guerra? Que imagem projectamos internacionalmente quando nos apresentamos ao mundo com um fuzil de assalto? Como podemos falar, com a devida credibilidade, sobre paz, reconciliação e desenvolvimento sustentável enquanto portamos um símbolo tão explicitamente associado à violência armada? Essas questões, parecendo que não, são dilemas éticos reais e estruturantes que afectam a nossa autopercepção nacional e a inserção internacional do nosso país. É preciso começarmos a pensar muito seriamente nisso.
P.S.2: Regressemos ao provérbio queniano que abre este texto. O elefante não para de beber água apesar do coaxar das rãs porque conhece a sua necessidade e sabe que precisa de água para sobreviver. Reconhece a sua legitimidade e tem direito natural àquela água. Confia na sua força, sabendo que nenhum coaxar tem poder para o deter. E mantém a sua dignidade, não se rebaixando a discussões inúteis ou a justificações permanentes perante quem não tem autoridade para questionar o seu direito básico. A mesma perspectiva deveria ser aplicada ao ANAMOLA e ao Venâncio Mondlane. O concurso aconteceu porque é constitucionalmente legítimo, com todos os fundamentos jurídicos claramente presentes e verificáveis. Foi um acto democraticamente exemplar, seguindo padrões de transparência e de participação que estabelecem novos patamares para Moçambique. É historicamente necessário, uma vez que símbolos autoritários não cabem confortavelmente em democracias maduras. E é nacionalmente apoiado, como demonstram as dezenas de milhares de cidadãos que participaram voluntária e entusiasticamente no processo.
P.S.3: Mesmo que a actual bandeira nunca mude oficialmente, o que dependerá de processos constitucionais complexos e da correlação de forças políticas (sobretudo no actual Parlamento), três vitórias já foram irrevogavelmente conquistadas.
A primeira é pedagógica: dezenas de milhares de moçambicanos, muitos dos quais nunca haviam participado activamente em processos políticos, aprenderam sobre vexilologia (ciência que estuda as bandeiras – a sua origem, história, simbolismo, design, evolução e uso cultural, político e social), participação democrática e soberania popular. Esta educação cívica é irreversível; estas pessoas nunca voltarão a ver os símbolos nacionais da mesma forma passiva ou reverente.
A segunda vitória é metodológica: estabeleceu-se um modelo robusto de participação que pode ser replicado noutras áreas da vida pública moçambicana. O ANAMOLA provou que processos transparentes, inclusivos e auditáveis são possíveis em Moçambique, contrariando o fatalismo de quem acredita que o país está condenado à opacidade e ao autoritarismo.
A terceira vitória é simbólica no sentido mais profundo, por ter demonstrado que nada, mas absolutamente nada, está acima do escrutínio democrático. Nem bandeiras, nem hinos, nem constituições. Tudo pode ser debatido, questionado e reformulado, desde que seja através de processos democráticos legítimos.
Portanto, o coaxar das rãs não parará a marcha do elefante. A vontade do povo moçambicano, expressa pela participação histórica de dezenas de milhares de cidadãos, é imensamente mais forte do que qualquer crítica oportunista, qualquer falso dilema retórico e qualquer tentativa de silenciamento através da ridicularização ou da intimidação. Porque, no fim, depois de todos os argumentos serem apresentados e todas as críticas serem ouvidas, a verdade permanece simples e incontornável – numa democracia genuína, são os elefantes que bebem a água os últimos vencedores, exercendo direitos legítimos e constitucionalmente protegidos. As rãs apenas fazem barulho, tentando inutilmente perturbar processos que não têm poder para deter.
